SOMOS TECELÃS DE MUITAS FACES E CULTURAS, TECENDO HISTÓRIAS ATRAVÉS DOS TEMPOS.

Tecendo a vida

Memórias

“Para mim o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo,
é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar,
o ato de denunciar a estrutura desumanizante
e de anunciar a estrutura humanizante.
Por esta razão a utopia é também
um compromisso histórico.”
Paulo Freire

1- “Vestida de azul e branco...”[1]
“É uma menina, vai ser professora !”
 Há pouco mais de meio século _ provavelmente vestida com uma longuíssima camisola bordada por minha avó, em um berço enfeitado com fitas cor-de-rosa, na Ilha do Governador_ recebi esta profecia que se autocumpriu. Os homens_ pai e avô_ foram os profetas e primeiros mentores, ensinando as primeiras letras a partir das manchetes dos jornais à então menina de cinco anos.
Às mulheres_ mãe, avós, bisavó e tias _ cabiam os cuidados e as memórias, narradas junto ao fogão, à máquina de costura e ao tanque de lavar roupas. Delas recebi minha primeira noção de tempo histórico, uma vez que convivi com e expressão “No meu tempo era diferente...” de pelo menos três gerações de mulheres e  as trago todas, no presente. Inaugurava-me, ainda que sem o perceber,  no campo dos estudos de gênero.
Leitora desde os cinco anos, professora desde os dezessete, ingressei aos dezoito no curso de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – UFRJ. Quanta efervescência em 1978! O movimento pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita mobilizava o IFCS; no Departamento de História, algumas figuras sombrias demarcavam o espaço do regime autoritário que assolava o país. Dentre os colegas, permito-me nomear uma mulher, a primeira feminista de carne e osso que conheci: Heny Vanzan. A partir de conversas com Heny iniciei minhas leituras  feministas: com Simone de Beauvoir, descobri que “Não se nasce Mulher, torna-se uma”  mas foi principalmente com a leitura de  Heloneida Studart _ em quem depositei meu primeiro voto_ que percebi que O Pardal é um Pássaro Azul [2]e que a união de militância e afeto fazem toda a diferença.
O ano de 1980 trouxe de volta para a UFRJ professores que não poderíamos ter perdido. Naquele ano conheceria um mestre e um livro: o mestre, Manoel Maurício de Albuquerque; o livro, Microfísica do Poder, de Michel Foucault, indicado pela professora Nilda Teves. Com Manoel Maurício, percebi que o rigor teórico poderia vir de mãos dadas com o bom humor e que saber e sabor _ ou questionamentos e experimentações_ fariam, dali em diante, parte da minha vida. É claro que esbarrei nas microrrelações de poder, porém já dava os primeiros passos no sentido de perceber que o pessoal é político e tal percepção ajudou-me a elaborar algumas táticas de resistência.
Ao concluir a Licenciatura em História, em 1981, encontrava-me ainda presa a um fluxo binário: de um lado, o mundo recém descoberto, representado pela vida universitária e do outro, a profecia familiar autocumprida, representada pelo trabalho em uma escola particular. A profecia, contudo, estava irremediavelmente contaminada pelos livros de Paulo Freire e o magistério transformou-se: de destino biológico, a única profissão possível para a condição feminina passou a ser opção política, com toda a intensidade, dor e beleza.

2- “ O sabor das massas e das maçãs...”
Decidida a aprofundar meus estudos na área de Humanas, solicitei em 1983 o reingresso na UFRJ, para o curso de Ciências Sociais. O movimento pela redemocratização do país intensificava-se, a campanha em torno da Emenda Dante de Oliveira ganhava as ruas; Rose Marie Muraro e Leonardo Boff tornaram-se meus autores de cabeceira. As instituições democráticas, silenciadas por longo período, floresciam; novos partidos políticos e organizações sindicais abriam fóruns de debates e grupos de estudos. Frequentei  debates e, com amigas, passei a ler e discutir alguns livros sobre a condição feminina.
Quanto ao magistério, prestei concurso público para o Município do Rio de Janeiro, obtendo ótima classificação e, após trabalhos em escolas situadas em áreas de baixa renda, integrei-me no projeto dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), desenvolvendo trabalho em Sala de Leitura. Foi como integrante da equipe do CIEP João Mangabeira que participei, pela primeira vez, de uma oficina de Teatro do Oprimido, ministrada por Liko Turle,, animador cultural do CIEP e um dos fundadores do _naquele momento em gestação_ Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro.
Em novo concurso público, desta vez para a Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, tendo obtido ótima classificação, iniciei o trabalho que significou uma nova etapa em minha vida profissional: escolhi, como lotação, a Escola Estadual Talavera Bruce[3], situada na penitenciária com o mesmo nome. Durante quatro anos ministrei aulas de História mas, principalmente, ouvi histórias. Participei, junto com outros professores trabalhadores em escolas situadas em penitenciárias, de reuniões que tinham como objetivo organizar uma petição para que a freqüência às escolas resultasse em redução de dias de pena, tal como acontecia com os dias de trabalho nas fábricas situadas nos diversos presídios.
Meu envolvimento com as questões de gênero _ nos grupos de estudos que participava, com as mulheres da penitenciária Talavera Bruce, no convívio com colegas de trabalho, nesta profissão ainda considerada feminina _aprofundou e decidi ser o momento de me candidatar a um Mestrado, para uma melhor qualificação profissional e uma iniciação na arte da pesquisa. A escolha recaiu sobre o Programa de História Social da Cultura, ministrado pelo Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, para o qual fui selecionada em 1991.
Na qualidade de mestranda do referido programa voltei minha pesquisa para as representações sobre a mulher presentes no paradigma penitenciário nas primeiras décadas da República. Vi emergir, nos interstícios dos escritos  masculinos dos integrantes do Conselho Penitenciário, o grito de mulheres excluídas, criminalizadas a priori por não corresponderem às representações do feminino formuladas pela elite masculina. Concomitantemente, ao cursar a disciplina Violência e Cultura Política, ministrada pelo professor Luíz Eduardo Soares, no IUPERJ,  fui convidada a integrar um grupo de pesquisa sobre a população carcerária da cidade do Rio de Janeiro cabendo-me entrevistar  mulheres na Penitenciária Talavera Bruce, onde ainda lecionava.
O início da década de 90 encontrou o país com o primeiro presidente eleito depois de anos de governos indiretos.  Em 1992,  junto com os preparativos para a ECO-92, fui brindada com um convite do Centro de Teatro do Oprimido, para um grande seminário a ser realizado na Aldeia de Arcozelo, um centro dedicado à atividades teatrais. Neste seminário _ no qual estavam presentes diversos grupos sindicais,  de ecologistas e outros representantes da sociedade organizada que tiveram contato com as técnicas do Teatro do Oprimido _ foi informada a intenção do teatrólogo Augusto Boal em lançar sua candidatura como Vereador da cidade do Rio de Janeiro, pelo Partido dos Trabalhadores; como proposta, uma nova qualidade de diálogo _ o teatro. Dizia Boal que, se antes se havia politizado o teatro, era hora de teatralizar a política. Iniciava-se minha participação efetiva no Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro.



3- Coragem de ser feliz[4]
Teve início a campanha político-teatral para o que mais tarde se tonaria o mandato político teatral do vereador Augusto P. Boal. O desafio de transformar questões em cenas capazes de suscitar debates, a palavra  gestada e fortalecida a partir  do corpo, o aprendizado em  lidar com os conflitos gerados tanto pela saudável diferença de opiniões quanto pela paixão com que realizávamos as tarefas foram grandes aprendizados.
Com a eleição de Boal, fui convidada a fazer parte da equipe, como assessora parlamentar , integrante da parte teatral do gabinete. O projeto, a pesquisa que Boal se dispunha realizar era o Teatro Legislativo, que viria a ser a utilização da técnica do Teatro Fórum para dialogar sobre necessidades e  futuros projetos de lei. Meu trabalho consista em: dinamizar grupos, utilizando a metodologia do Teatro do Oprimido; participar com o gabinete teatral da elaboração e encenação de sketches e fornecer assessoria quando algum tema relativo à educação entrasse em pauta de discussão. Ficou a cargo do gabinete a organização do V Festival Internacional de Teatro do Oprimido, realizado no Centro Cultural Banco do Brasil.
Integrei o projeto do Teatro Legislativo durante dois anos, licenciando-me do Centro de Teatro do Oprimido para concluir meu Mestrado _ que na época poderia ser feito em oito semestres. Retornei ao CTO em outro contexto: Boal não se reelegera para um segundo mandato e os cinco integrantes remanescentes do Gabinete teatral iniciaram o processo de transformar o Centro de Teatro do Oprimido em uma organização não governamental.
Neste período, participei de dois festivais internacionais de teatro: um específico de Teatro do Oprimido, em Toronto, Canadá (1997) e outro de Teatro Experimental, no Cairo, Egito (1998). Nas duas experiências de deslocamento, pude vivenciar ser representada como uma mulher do Terceiro Mundo, no Canadá e uma mulher ocidental, no Cairo.  Os dois festivais inauguraram minha nova relação com o CTO- Rio; não mais integrante efetiva, mas parceira, convidada (e convidando-me) para trabalhos pontuais.
No magistério, uma nova tarefa se delineou: fui convidada a exercer a função de Diretora Adjunta do Núcleo de Artes Alencastro Guimarães. Os Núcleos de Artes destinavam-se ao ensino das linguagens artísticas aos estudantes da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro. Confesso que,  entusiasmada com a possibilidade de unir o fazer artístico com a escola municipal, não perguntei quais as tarefas de uma diretora adjunta; descobri, na prática, que era uma tarefa eminentemente burocrática. Durante dois anos, passei a maior parte das quarenta horas semanais que me cabiam preenchendo formulários e mais formulários. Contudo, nem só de planilhas vivia meu trabalho, sempre sobrava algum tempo para debates pedagógicos fecundos, idéias  novas.
Continuei minha relação com o CTO-Rio, já organizado como uma Organização Não Governamental. Participava esporadicamente de alguns trabalhos e festivais e, no Primeiro Festival de Teatro do Oprimido organizado pela Prefeitura de Santo André (SP), conheci um grupo que estava se apresentando fora do Rio pela primeira vez. Foi no ano de 2001 que eu entrei em contato com o Grupo de Teatro do Oprimido Marias do Brasil _ o mesmo grupo que é tema do anteprojeto que submeto à apreciação deste programa.  As Marias, como  são carinhosamente chamadas, me impressionaram desde então pela coragem com que enfrentam a cultura do silêncio e o processo de invisibilização ao qual ainda são submetidas grande parte das trabalhadoras domésticas.
Ao longo dos anos de trabalho com teatro, pude constatar que, muito embora as técnicas de Teatro do Oprimido buscassem a clareza para  a transformar  uma situação considerada de opressão, havia algo mais sutil, construído não pela técnica, mas pelos laços entre as pessoas que compartilhavam o processo de criação. Desejava aliar o teatro a outras formas de expressão[5] e este desejo propiciou meu encontro com a Arteterapia.
Ao longo da minha especialização como Arteterapeuta, novos trabalhos comunitários, agora envolvendo a questão de gênero. Um dos trabalhos marcantes foi realizado com mulheres em situação de rua, recolhidas em um abrigo da Prefeitura do Rio de Janeiro. Deste encontro, resultou minha monografia de final de curso: Cerzindo Histórias com Fios de Luz; o uso da fotografia em trabalho arteterapêutico com mulheres. Resultou também a percepção que o feedback da própria imagem, ou a possibilidade de se representar de outra maneira e obter o feedback desta transformação através de fotos ou vídeos pode contribuir para mudanças, ainda que pequenas, de atitudes. Algumas das fotos das mulheres, mediante autorização prévia, compuseram a exposição Mulheres Visíveis, apresentada no Colóquio Fronteiras e Diversidades Culturais no Século XXI: desafios para o reconhecimento no estado global.
Após a conclusão da Especialização em Arteterapia, ministrada pelo Instituto Superior de Ensino e Pesquisa, em convênio com a Clinica POMAR, no Rio de Janeiro, fui convidada a integrar, em 2006, a equipe de professores da Pós-Graduação, como docente da disciplina Arte, Identidade e Cultura e como orientadora de monografias.
O trabalho de acompanhar arteterapeutas em formação _ em  grande maioria, mulheres _ nos seus primeiros passos como pesquisadores, aprofundou o desejo de retomar minha carreira acadêmica de forma mais sistematizada. A questão do empoderamento das mulheres tem norteado minha prática, a qual desejo enriquecer com a reflexão e a pesquisa. Considero, concordando com Rosi Braidotti, que alternativas de empoderamento das mulheres possam surgir do intercâmbio mais efetivo entre teóricas e artistas. Esta é minha  utopia e, portanto, meu compromisso histórico.







[1] Normalista, canção de Benedito Lacerda e David Nasser.
[2] Título de livro de Heloneida Studart, editado pela Civilização Brasileira, em 1978.
[3] Hoje Escola Estadual de Ensino Supletivo Burle Marx.
[4] Este foi o slogan da campanha do teatrólogo Augusto Boal para o cargo de vereador da Cidade do Rio de Janeiro, pelo Partido dos Trabalhadores. A frase dialogava com o slogan da candidatura de Luíz Inácio Lula da Silva à Presidência da República: Sem medo de ser feliz ! Segundo Boal, não bastava não ter medo, para ser feliz era necessário ter coragem .
[5] O livro Estética do Oprimido, publicação póstuma dos últimos escritos de Augusto Boal, já traz uma prática teatral dialogando com outras modalidades expressivas como a música, pintura, escultura.

Nenhum comentário: